terça-feira, 7 de outubro de 2008

Dor de alma


Sim. Tudo seria realmente mais fácil se fosse igual aos demais.
Mas não era.
E tal evidência doía-lhe na carne – na carne, que a alma tê-la-ia perdido há já muito, se alguma vez a tivesse tido, assim vaticinara o Padre Rafael numa eucaristia raivosa de Semana Santa. E a prova disso mesmo é que a alma não lhe doía, e se não lhe doía era porque não existia.
Pelo menos sempre tinha tido esta máxima por verdade. A mãe, mulher prática e pouco dada a transcendências, só se apegava a S. Tomé porque ele sim, era dos dela, ou bem que havia provas ou então nada feito, ver p’ra crer, sim senhora, agora assim, rezar às cegas, hipotecar uma vida inteira à espera de um bem eterno de onde nunca ninguém veio para contar, santa paciência, ainda por cima começava-se a vida já a dever, raios partam aquela treta do pecado original, é bom e basta, e se formos a ver bem de original tem pouco ou nada, ou não tivéssemos nascido todos da mesma maneira, mais grito menos grito. Enfim, fosse por essa ou outra razão, a verdade é que o Padre Rafael nunca lhe tinha perdoado a bolada ao vitral da Nª Senhora que estava por trás do púlpito e desde esse dia tinha o prazer mórbido de lhe falar das crianças desalmadas que mal chegavam ao Juízo Final eram arrancadas dos braços das mães que, pelo desgosto, nunca sairiam do Purgatório na esperança vã de recuperar os seus meninos e acabavam por enlouquecer.
Cláudio cresceu então aterrorizado com o sofrimento que irremediavelmente provocaria à sua mãe por não ter alma. Durante anos vigiou religiosamente o seu quarto, paredes e sombras, na esperança de ver algo de se assemelhasse a uma alma, qual Peter Pan entrado pela janela da Wendy atrás da sua sombra, mas sem sucesso. Nada fazia crer que houvesse uma alma perdida à sua procura. Não via nada, não sentia nada. Nem um bocadinho, nem ao respirar, nem quando ficava muito quietinho na cama, um olho fechado e outro aberto, a ver se a via espreitar atrás do espelho do toucador ou do cortinado amarelo com barquinhos azuis. Nada.
Assim, um dia Cláudio desistiu de esperar.
A custo, aceitou o seu destino de pecador desalmado e aprendeu a resignar-se, a baixar a cabeça e os braços quando passava na rua e era apupado e agredido pelos colegas de escola, jovens que aplicavam a mesma devoção a rezar o Pai-Nosso e a infernizar a vida de Cláudio.
Só, triste e ostracizado, Cláudio ocupava o seu tempo a inventar um mundo onde não houvesse vitrais que se partissem com boladas acidentais, onde as almas não se despegassem dos pés dos meninos que fizessem disparates, onde houvesse um Cérbero raivoso para cada Padre Rafael, que fizesse com todos os dentes das três cabeças a justiça que Cláudio sentia faltar.
Claro que, numa espiral de culpa, cada vez mais Cláudio se afastava dos outros, e cada vez mais os outros temiam Cláudio pela diferença que ele representava.
E foi assim que um dia de manhã Cláudio partiu à procura da sua alma. Mais do que a falta que lhe fazia, preocupava-o a falta que ela faria à mãe no dia do Juízo Final.
Durante anos errou pelo mundo, em ocupações nem sempre dignificantes, mas sempre guiado pelo mesmo propósito – salvar a mãe da loucura e do Purgatório.
Até um dia. O dia em que desistiu.
Deixara-se enfim levar pela corrente.
Costas curvadas, olhos errantes, gestos trémulos, foi assim que Cláudio entrou no armazém onde davam sopas e pão aos indigentes.
Esperou a sua vez na fila, esfregando as mãos para enganar o frio e a dormência, com as vozes disformes ecoando nos seus ouvidos. Ouvia dezenas de conversas cruzadas, algumas com interlocutores reais, outras que esperavam indefinidamente resposta.
Quando finalmente chegou a sua vez, estendeu as mãos para agarrar o que lhe ofereciam e agradeceu, com os olhos rasos de vergonha e desamparo.
Foi sentar-se numa mesa onde estava já um outro homem, sexagenário, que não parava de se queixar do sapato que lhe apertava o pé direito.
Era o Sr. Álvaro. Homem afável, certamente habituado a conhecer novos companheiros de mesa a cada jantar, ignorou o olhar cabisbaixo de Cláudio e falou, quase ininterruptamente, dos males que o achacavam por causa dos diabretes que tinha no sangue e que lhe tinham roubado a vida e um pé.
Cláudio levantou então os olhos da malga de sopa e olhou para debaixo da mesa. O pé que lhe faltava era o direito, precisamente aquele de que se queixava por ter o sapato apertado.
Uma alegria indescritível apoderou-se de Cláudio que, instintivamente, abraçou e beijou o Sr. Álvaro, que não percebia nada do que se estava a passar, mas que percebia que tinha saudades de que o abraçassem assim, tantas quantas Cláudio tinha da sua mãe e do cortinado amarelo com barquinhos azuis do seu quarto ou dos mundos que aí inventava.
O Sr. Álvaro, a quem tinham amputado o pé direito por causa da diabetes, continuava a sentir claramente os joanetes. Fora um alívio saber disso. Se podia haver dor sem pé, também ele podia ter alma mesmo que só lhe doesse a carne.
Afinal sempre havia salvação!


Susana Soares
06.10.08

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Memórias


Ester esquecera tudo. Ou quase tudo. Apenas não o sabia.
Todos os dias se levantava cedo, puxava os lençóis para trás e punha a cama a arejar.
Abria a janela, batia as almofadas para a rua, ajeitava-as e guardava-as meticulosamente no guarda-vestidos, já quase insufladas como balões, fofas e apetecíveis.
Achava curioso a almofada do marido nunca estar tão marcada como a sua. Enfim, sempre tivera um sono pesado, muito mais do que Carlos, que mal raiava o dia já estava de pé, a vestir-se de costas para a cama, vestígios da educação e do pudor que sempre tivera.
Vestia-se, tomava o café à janela, olhando o Tejo que se estendia ao longe, enquanto ia trincando uns biscoitos de canela (os seus favoritos e que Ester fazia tão bem).
Pegava então no casaco e voltava ao quarto, beijava Ester na testa e saía pé ante pé para não a acordar, sem se aperceber do breve sorriso que aflorava os lábios adormecidos de Ester.
Enquanto descia as escadas, Carlos acendia um cigarro e dispunha-se a começar o dia. Entrava então na rua, desaparecendo na multidão.
Quando Ester acordava já Carlos não estava. Viria à noite, quando acabasse o serviço, quantas vezes já depois de Ester se deitar, mas nunca sem antes deixar o jantar guardado no forno, embrulhado em jornal, a mesa posta, o copo e a garrafa de vinho eternamente encetada em cima da mesa.
Esticava os vincos da toalha com um esmero quase obsessivo, impregnado de uma mescla de saudade terna e solidão resignada, acertava a posição dos talheres e do prato para não descentrar dos cestinhos de fruta bordados na toalha, escondia aquela maldita queimadela de cigarro com a base do copo e olhava, embevecida, para a perfeição da sua obra, a perfeição do seu amor.
Não tardaria que Carlos chegasse, e assim que sentisse a chave na porta poderia adormecer profundamente. Tudo estaria bem.

De manhã, depois dos lençóis puxados para trás, da janela aberta e das almofadas batidas, Ester abria o guarda-vestidos, pousava as almofadas e demorava-se então em frente ao espelho embutido na parte de dentro da porta, já com uma ou outra manchas de ferrugem a acusar a idade do móvel. Ajeitava os caracóis arduamente conseguidos graças aos rolos da menina Isabel que, enquanto segurava entre-dentes os alfinetes com cabeça de plástico colorida que prendiam as mechas de cabelo aos rolos, ia contando histórias e casos da vida do bairro, nunca sem deixar sair um ou outro “eu cá sempre achei estranho”, ou “eu sempre disse”, ou um profético “cada um sabe de si, e Deus sabe de todos”.
Quando ouvia esta tirada, Ester mordia-se sempre para não responder “olha que eu cá nem sempre sei de mim, e cheira-me que Deus também não!”. Mas não dizia nada. Limitava-se a abanar o leque com mais afinco.
Ester ansiava sempre pelo momento do secador, não por ser particularmente agradável mas por ser a única altura em que a menina Isabel falava sem voz, e então Ester divertia-se a ver os lábios da menina Isabel a mexer e a pôr-lhe na boca coisas que ela jamais diria…
Mas isto era no tempo em que Ester achava que valia a pena zangar-se e rir-se.
Agora Ester já não se zangava nem se ria. Apenas suspirava, concentrada nos vincos da sua saia plissada.
É verdade, onde estará a saia? Vou procurá-la, não passa de hoje.
E fechava então a porta do guarda-vestidos que também guardava as almofadas e a imagem de Ester dentro do espelho, também ela já com uma ou outra mancha a acusar a idade.
Dirigia-se então à casa de banho, onde se arranjava e se pintava com o batom vermelho de que nunca se esquecia, porque uma mulher sem pintura é como um esboço de um quadro, e nunca ninguém se importa com um esboço de um quadro, como lhe dissera uma vez Carlos. E Ester amava Carlos.
Disso ela jamais se esqueceria.

Ester voltava à janela, à mesma janela onde tinha batido as almofadas, à mesma janela onde Carlos gostava de tomar o café enquanto contemplava o Tejo e sonhava a vida, e pensava que tinha que fazer mais biscoitos de canela.
Ester nunca se lembrava que tinha latas e latas cheias de biscoitos de canela, nem reparava que a mesa do jantar se mantinha intacta, nem que há muito tempo não ouvia a chave na fechadura.
Ester vivia numa espécie de limbo de que só ela conhecia as coordenadas.
E isso não a perturbava, até porque ela não se apercebia disso. Aliás, dava-lhe uma paz invejável.
Mesmo quando foi para o Lar.
Sobretudo quando foi para o Lar.
Até porque lá lhe compunham os caracóis sem ter que aturar os vaticínios da menina Isabel.
Até porque lá encontrara a sua saia plissada.
Até porque lá tinham muitos espelhos onde ela se podia pintar.
Até lá tinham uma toalha com cestinhos de fruta bordados…
Não tardaria que Carlos chegasse, e assim que sentisse a chave na porta poderia adormecer profundamente. Tudo estaria bem.

Susana Soares
22.05.08

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A sétima onda


Lluvia (Chuva), óleo sobre tela, 1997

Jaime Alberto Franco (Cali, 1963)


Por uma vez decido ceder.
Abandonar-me à chuva que cai. Esquecer a pressa, o desconforto da roupa colada à pele, a humidade entranhada na alma como se fosse mofo.
Abrando o passo, acerto a respiração com o ritmo das gotas que caem.
Paro.
Agora a nuvem sou eu. Sou eu quem chove. É a minha alma que se desfaz em água.
E, pela primeira vez em muito tempo, sinto-me una. Sinto-me EU.
Agora, mais do que nunca, a roupa é um estorvo, os sapatos um absurdo por resolver.
Descalço-me.
Dispo-me.
Sinto a chuva a beijar-me a pele, a escorrer-me pelo corpo, a infiltrar-se insidiosamente em cada poro.
E um desejo de abandono dos sentidos torna-se um imperativo. Já não sou eu quem comanda os meus passos.
Uma sede de mar, de ondas, de marés vivas dentro de mim vão gritando até todo o mundo ser uma massa sonora, um pedido de ajuda impossível de ignorar.
Olho a orla da praia uma última vez. Dirijo agora o meu olhar para o horizonte, a linha cinza e difusa em que o céu e o mar se tocam.
A chuva continua, incessante, como se viesse do princípio do mundo.
É inevitável o meu caminho.
Tão inevitável como a chuva que cai, dolente e lasciva.
Respiro fundo uma última vez e avanço.
A chuva cai, mas já não a sinto.
Misturo-me com o mar.
Já não sinto a água a tocar-me a pele.
Fundimo-nos.
Espero então a sétima onda para ganhar escamas prateadas e poder mergulhar.


Susana Soares
21.05.08

sábado, 19 de abril de 2008

Luz negra

"Mulher sentada a um espelho", de Kirchner


Falta menos de uma hora. Está quase.
Calma, Camila, calma!
Não te serve de nada entrar em pânico. Não te vais esquecer de nada. Lembra-te do que ele te disse. Respira fundo, conta até dez, conta até vinte, conta até te fartares de contar. Olha para o espelho e vamos, mão firme, não podes falhar o risco, não borres a pintura, não há tempo para recomeçar. Uma vez só. Mão segura, anda, aqui não há luxos, és tu que te maquilhas.

Estás velha, Camila, velha e gasta. E não saíste da cepa torta. Que miséria de vida! Saudade do cheiro da terra quente com chuva, de rebolar na relva, de enterrar os pés na areia. Saudades de sentir os olhos a seguir-te quando passavas. Saudades de te sentires bonita. Desejável. Desejada.
Então, Camila, segura as lágrimas, estás parva ou quê? Mão firme, Camila, pinta-te, vá, esquece isso, arruma as ideias, pousa-as em cima da mesa, pendura-as no cabide, guarda-as na gaveta, dobra-as ao pé da roupa e dos sapatos, faz o que quiseres mas livra-te de continuar a pensar nisso. As falas, Camila, não te esqueças das falas. E se te esqueceres não dês parte de fraca, Camila, respira fundo, mexe nos objectos de cena e retoma o discurso.

Credo, este vestido está cada vez mais coçado. Não sei se chega ao final da temporada. Tem de chegar, dê lá por onde der. Tem de chegar. Têm de chegar. O vestido e tu.
Anda, Camila, sai da frente do espelho, já chega! (Até nem ficou mal. Pelo menos, melhor que ontem. Já não é mau.) Costas direitas, Camila, vá. Está quase. Esquece tudo. Esquece a desilusão. Esquece o medo. Esquece a noite. Esquece as rugas. Esquece as mágoas. Esquece a solidão. Esquece que existes. Sobretudo isso. Esquece-te de ti.
E vai.
É agora. Não olhes para trás.

Merda.





Susana Soares
19.04.08


sábado, 12 de abril de 2008

Hiatos


M.C. Escher

E se não for verdade?
Pagar o infantário.
Não, não posso ir aí hoje. Tenho coisas para fazer.
Estou, mãe? Desculpa, não ouvi o telefone. Está tudo bem?
Sim, filho, prometo que da próxima vou.
A carta do adiamento. Não me posso esquecer.
Pagar a casa.
Bolas, o camião não sai da frente e já estou atrasada!
E se ela está a dizer a verdade?
A prestação do carro já deve ter caído.
Sim, um dia destes passo aí, está prometido.
Está tudo bem, sim, e contigo?
Eu sei, filho, mas tenho uma reunião, não posso.
A carta. Ainda não mandei a carta. Não me posso esquecer.
Comprar fraldas.
Aqui posso passar, o semáforo não funciona.
É demasiado escabroso. Será verdade?
Leite. Não há leite em casa.
Tenho que ver quando é que marquei os testes.
Sim, os meninos estão bem.
Combinamos assim, hoje podes adormecer comigo, queres?
Será possível?
O prazo está a acabar e falta quase tudo.
Obras, não faltava mais nada!
O que é que eu faço?
Tanto sono!
Comprar jantar.
Requisitar material.
Amanhã já é sexta. Está quase.
O eco nos meus ouvidos: “preciso de ajuda!”
Já não sei nada.
Sim, mãe, está tudo bem, só estou cansada.
Até logo.

Susana Soares
12.04.08

terça-feira, 18 de março de 2008

Fados


Margarida era uma fatalidade.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.

Sempre assim fora. Mesmo antes de nascer.
A mãe de Margarida, Rosa de nome, não tinha grande jeito para a maternidade, e quando soube que estava grávida chorou convulsivamente durante sete dias. Depois fartou-se de chorar e jurou que nunca mais verteria uma lágrima por causa daquela criatura que lhe tinha vindo estragar a vida. Aliás, Rosa decidiu nesse dia que nunca iria ser mãe. Assim, durante os penosos seis meses que se seguiram, nunca mais Rosa se preocupou com aquele ser cada vez menos minúsculo que a ia tentando dominar, ocupando-lhe as entranhas, e despertando sentimentos piegas a quem a rodeava.
Até ao dia em que acordou encharcada entre as pernas e percebeu que a criança ia nascer.
De cócoras ao pé da cama, sem um grito, mordeu as almofadas e fez força até aquela criatura sair.
Era Margarida que resolvera ser gente.
E Rosa, extenuada pelo esforço e pelo desgosto de não poder continuar a ignorar que tinha uma filha, num momento de fraqueza decidiu que a menina que ali estava se chamaria Margarida, como a bisavó. Talvez isso a protegesse dos males do mundo.
Depois recobrou forças, vestiu-se e, enrolando Margarida num lençol, levou-a à mãe e disse-lhe: “Tens aqui a tua neta. Chama-se Margarida, como a tua avó. Pode ser que assim gostes dela o que não gostaste de mim”. Virou costas e saiu.
De casa.
Da frente da mãe, ainda boquiaberta.
Da vida de Margarida.
Não voltou a aparecer.
Ainda escreveu algumas cartas. Sete, ao todo. Em todas dizia que estava bem e que não se preocupassem com ela. Em todas esperava que estivesse tudo bem lá por casa. Em nenhuma falou de Margarida.
Enfim, diriam os que a conheceram que Rosa nunca fora flor que se cheirasse.
Mas deixemos Rosa com os seus espinhos e voltemos a Margarida.
Criança pouco expansiva, desde cedo se revelara uma preocupação para a avó, que, dividida entre um amor genuíno à neta e um sentimento de culpa por uma culpa que não era dela mas que nem por isso a deixava dormir, tentava ser para a neta o que, pelos vistos, não fora para a filha. E tinham desenvolvido, entre elas, uma cumplicidade muda que lhes ia preenchendo os vazios no coração com bocadinhos de bem-querer.
Era frequente ver as duas, em dias de chuva, sentadas em silêncio lado a lado enquanto seguiam com os olhos as gotas grossas que iam escorrendo pelas vidraças da janela, cada uma com as suas gotas, dentro e fora dos olhos, umas e outras convergindo para pequeninos rios até que estes se juntavam num riozinho maior, com força suficiente para não deixar isoladas gotas perdidas, lavando um pouco à sua passagem. Dentro e fora dos olhos. De avó e neta. E depois levantavam-se, mesmo sem se olharem, e iam tratar das suas coisas. Sem uma palavra. Apenas um pouco mais reconfortadas.
Fatalmente, chegou o dia em que Margarida perguntou à avó pela mãe.
Fatalmente, chegou o dia em que a avó de Margarida teve que dizer à neta que não sabia da filha e que isso lhe doía mais do que a morte.
Fatalmente, chegou o dia em que Margarida e a avó choraram agarradas uma à outra, já sem procurar refúgio nas gotas grossas de chuva que iam escorrendo pelas vidraças da janela.
E finalmente chegou a noite em que a avó de Margarida percebeu que a culpa não era dela e adormeceu em paz.
Percebera, finalmente, que tudo fora apenas uma fatalidade.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.
Como Margarida.

Susana Soares
18 de Março de 2008

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Júlia

Magritte's window (1980)
Black and white photograph 102 x 153cm


La nuit n’est jamais complète
Il y a toujours puisque je le dis
Puisque je l’affirme
Au bout du chagrin une fenêtre ouverte
Une fenêtre éclairée


Paul Éluard


Júlia estava finalmente decidida a acabar com tudo. Desde sempre soubera que esse momento teria de chegar. Inevitavelmente. Dolorosamente. Irremediavelmente.
Vida difícil, igual a tantas, igual a nenhuma.
Quem a visse na rua, mulher banal, mas nem por isso desinteressante, não suspeitaria da vertigem que se apossava de Júlia quando atravessava a estrada por onde passavam os camiões dos homens que a assobiavam. Ou quando se abeirava da varanda para ver os filhos ainda pequenos, já tão grandes, a ir para a escola com mochilas e sonhos maiores que eles. Ou quando subia para a ponte do ferry, com o sol na linha do horizonte e a alma capaz de caber numa casca de noz.
Sim. Decididamente, quem visse Júlia jamais suspeitaria dessa vertigem. Dessa sede de infinito num fim indolor, como o virar de uma página ou um trago de água pura ou uma folha que cai.
E, sim, naquele dia Júlia tinha decidido acabar com tudo.
Nada de muito diferente dos outros dias acontecera. Talvez apenas uma aragem que corresse mais forte, como um convite ao voo. Levantou-se, olhou os filhos que ainda dormiam e beijou-os nos olhos que guardavam as lágrimas que a mãe não sabia chorar. Aconchegou-lhes os lençóis e saiu, pé ante pé, para não os despertar. Fechou-se na casa de banho, rodou a chave por dentro e olhou-se longamente ao espelho. Olhava pela primeira vez para o seu rosto sem medo do que poderia ver. Despiu-se e assim ficou, nua em frente ao espelho, como se aquela fosse outra. Procurou-se até se encontrar.
E quando se encontrou decidiu que era o momento.
Então, pela primeira vez em muito tempo, deixou de lutar contra a vertigem. Uma sensação de plenitude apoderou-se de cada poro da sua pele e Júlia abandonou-se.
Foi então que as lágrimas começaram a cair dos olhos de Júlia, pelo rosto de Júlia, pelo corpo de Júlia.
Ela tinha conseguido acabar com o Silêncio.
Agora, finalmente, tudo iria acabar.
E ela podia começar a Viver.

Susana Soares
(20.02.2008)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O anel (amor às avessas)



Encontrara-o por acaso, por entre o tapete de folhas do jardim que atravessava diariamente para ir para a escola. Para vir não, que já estava escuro e o jardim tornava-se perigoso. Pelo menos assim lhe dizia a tia Alberta, mulher seca e muito pouco dada a romantismos e a folhas caídas – nem às do jardim nem às do Garrett, um desavergonhado, um rabo de saias que só deu conta de que tinha alma e sentimentos nobres quando lhe faltou o viço. E então, vá de pedir perdão, a Deus e aos anjos, e já agora às mulheres de quem fez gato sapato, para não parecer mal. Os homens são todos iguais, valha-me Deus, não prestam para nada. Olha, o meu não me prestou nem para me fazer um filho, e agora é a minha irmã que me acolhe como quem acolhe um cão vadio, sabe-se lá se por pena se para provar que é melhor que os outros, mas seja como for não é por gostar de mim. Ah isso é certo, como dois e dois são quatro. E como se não bastasse o castigo da comiseração alheia, ainda levo com a miúda, e com os sonhos da miúda, e com as horas ao espelho da miúda, e com as horas ao telefone da miúda, e com a música aos altos berros da miúda, e com as manias da natureza da miúda, se já se viu isto, trazer para casa folhas mortas das árvores, nem para fazer estrume servem, só fazem lixo, é o que é, e eu é que tenho que o limpar. Sim, que isto é tudo muito bonito, mas se não fosse aqui a tia Alberta, que não presta para nada, quem ninguém vê, que cumprimentam por acaso quando chegam e saem de casa, isto não era uma casa, era uma pocilga. Ainda ontem, mal chegou a casa fechou-se no quarto e nem bom dia nem boa tarde, aquela garota é uma malcriada, é o que é. Ao jantar lá se dignou a aparecer, jantou, arrumou o prato e desapareceu outra vez para o quarto, enfim, o costume. Só não foi o costume quando lhe vi aquele anel na mão, aquele olhar terno na minha direcção, a mão estendida a dizer toma, fica com ele. P’ra que é que eu quero uma coisa dessas, Lena? Donde raio vem esse anel? Tu não me digas que o roubaste a alguém, Lena. Oh, valha-me Deus, a quem é que roubaste isso, Lena? Vai devolver imediatamente o anel antes que haja chatices, Lena! Tu não tens vergonha, Lena?

Depois o silêncio.
A voz de Lena a dizer que tinha encontrado o anel no jardim, por acaso, por entre o tapete de folhas do jardim que atravessava diariamente para ir para a escola. Para vir não, que já estava escuro e o jardim tornava-se perigoso. Como lhe ensinara a tia Alberta.
Qualquer coisa sobre um anagrama, sobre ler-se de trás para a frente, como Roma e amor, como anel e Lena.
E a sensação de a ter ouvido dizer que gostava da tia, e de ela nunca a ter deixado dar-lhe a mão, e de com aquele anel trazer a Lena pela mão.
Numa espécie de amor às avessas.

Susana Soares
28.01.08

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Alice

Metamorfose de Narciso, Salvador Dalí


Por trás do espelho, Alice sorri, convidativa.

Por trás do espelho, diz Alice, é tudo mais verdadeiro.

Por trás do espelho, garante Alice, encontra-se a plenitude.

Por trás do espelho, jura Alice, os morangos sabem a sol.

Por trás do espelho, promete Alice, não verteremos mais lágrimas.

Por trás do espelho, Alice faz caretas.



Ó Alice, por que não dizes a verdade?

Estás só, e estás farta, e os morangos sabem ao mofo das lágrimas que choraste para dentro.

Oh, Alice, como lamento a tua escolha de viveres uma vida asséptica, insípida, sem defeitos de fabrico...



Parte o espelho, Alice!

Rasga a carne, Alice!

Dilacera a alma, Alice!

Grita, Alice!

Anda, Alice, para o lado de cá do espelho!



Susana Soares

24.01.2008

domingo, 20 de janeiro de 2008

Teia de Penélope

Procuro a palavra certa
como se o ar me faltasse.
Vagueio pelas paredes
como se no branco me salvasse.
Começo pelo fim,
pelo Z (de zero),
querendo apenas
o A (de alvorada).
Tento o L de Lua
mas só chego ao Lodo.
E então recomeço.
Zumbem os ouvidos
com o silêncio que asfixia.
Cegam os olhos
com o brilho das palavras.
Fecho os olhos.
Volto a abri-los.
E, como por magia,
vejo aquela palavra.
Vejo a minha palavra.
A Palavra.
Num desenho informe
a palavra escreve-se,
descreve-se e desescreve-se.
E eu, palavra perdida
depois de achada,
recomeço-me, incessante,
como Teia de Penélope.

Susana Soares
04.06.1999

No quarto


No quarto roemos o sabor da fome
A nossa imaginação divaga entre paredes brancas
Abertas como grandes páginas lisas.
O nosso pensamento erra sem descanso pelos mapas
A nossa vida é como um vestido que não cresceu connosco.

Sophia de Mello Breyner Andresen

(A propósito da adolescência dos meus alunos.)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Carta de Amor

Era uma vez uma casa. Branca. Enorme. Cheia. Era uma vez um vira-vento a girar. Era uma vez um homem e uma mulher que se amaram sempre. Era uma vez um irmão desse homem que vivia escondido numa japoneira e que foi morto em casa, à frente da irmã, por assassinos da PVDE. Era uma vez um vira-vento a girar.
Era uma vez um homem e uma mulher que, tendo-se amado sempre, foram sempre amigos. Era uma vez três filhos desse homem e dessa mulher. Era uma vez um piano. Era uma vez um vira-vento a girar.
Era uma vez os filhos do homem e da mulher que se amaram sempre. Era uma vez os morangos no quintal. Era uma vez o baloiço no castanheiro. Era uma vez o casarinho e as voltas de bicicleta. Era uma vez o mirante e os foguetes às oito da manhã. Era uma vez (tantas vezes) a Black escondida dos foguetes. Era uma vez o vira-vento a girar.
Era uma vez a chuva a escorrer pelas janelas. Era uma vez o frio de Janeiro. Era uma vez o presépio com as setas viradas para os sítios certos, com os bonecos a avançar todos os dias um bocadinho. Era uma vez um pinheirinho a sério com velas a sério apagadas com cuspo nos dedos.
Era uma vez os "Parabéns a você" ao Menino Jesus na noite de Natal. Era uma vez o vira-vento a girar.
Era uma vez uma árvore para cada um dos netos do homem e da mulher que se amaram sempre. Era uma vez o Sr. António. Era uma vez o Sr. António em cima do vira-vento.
Era uma vez os relógios da casa parados. Quando morreu o homem. Quando morreu a mulher. Era uma vez uma casa cada vez maior. Era uma vez o vira-vento a girar.
Mas era uma vez os filhos dos netos do homem e da mulher que se amaram sempre.
E era uma vez, outra vez, o piano. E os morangos no quintal. E o baloiço no castanheiro. E o casarinho e as voltas de bicicleta. E o mirante e os foguetes às oito da manhã. E a chuva a correr pelas janelas. E o frio de Janeiro.
Era uma vez, outra vez, o vira-vento a girar.
Susana Soares
14 de Fevereiro de 2006

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O Mar e a Praia

O mar e a praia estão sempre perto um do outro.
Querem ambos aprender a falar, aprender a dizer
uma única palavra. O mar quer dizer "praia"
e a praia "mar". Cada vez estão mais próximos
da fala, depois de milhões de anos, de dizerem
aquela palavra solitária. Quando o mar disser "praia"
e a praia "mar",
a redenção virá ao mundo,
e o mundo retornará ao caos.

Yehuda Amichai (1924-2000), poeta israelita.

Um nome

Vou guardar as tuas mãos na paixão que tenho por ti,
mas näo te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber. Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos amarmo-nos. Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui. Pertencia a outra paixão, e já a esqueci. Dá-me tu um nome para eu poder ficar contigo...

Al Berto

Sem nada de meu

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem) . Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.

Rui Knopfli

Aurea mediocritas

Em tempos antigos, foi esta a máxima de vida de homens tão insignes como Horácio.
Em tempos antigos, a aurea mediocritas, que se pode traduzir como mediania dourada, era o caminho para alcançar a plenitude.

Em tempos antigos.

Desde então muito tempo passou, muitas mais voltas o mundo deu, muitas mais vezes se sonhou.
E eis-nos de novo atracados neste porto: aurea mediocritas. Desta feita, o caminho para alcançar a notoriedade. Ainda que oca. Ainda que fugaz.

Mas vamos por partes.
Mediocritas. Mediocritas, atis, nome latino da terceira declinação, caso nominativo, género feminino, número singular. Significa mediania, meio termo, mediocridade (sim, medíocre é o mesmo que mediano!...). Algo que não sai das normas. Que não transgride. Que não provoca. Que não tange as cordas da emoção. Que não leva ao frémito das asas a querer voar. Mediocritas. Assim mesmo.
Áurea. Aureus, a, um, adjectivo latino da primeira classe, caso nominativo, género feminino, número singular, grau normal. Significa dourada, de ouro.
Brilha, portanto.
Mas também se diz que nem tudo o que brilha é ouro.
E é verdade.
Sobretudo nos tempos que correm.

Vivemos num tempo de aurea mediocritas, em que a mediocridade impera. Desde que seja dourada.
Nunca como agora se viu tanta gente medíocre a brilhar. E com honras de primeira página.
Sim, que o que é preciso é aparecer e brilhar.
Mesmo que a notícia não seja notícia. Mesmo que a verdade do momento se apague quando se apagam as luzes das câmaras e da ribalta. Mesmo que o fundamental fique por dizer. (Sobretudo se o fundamental ficar por dizer.)

Cansa.
Tanto brilho cansa.
Tanto barulho cansa.
Tanto vazio cansa.

E uma vontade crescente de encher o peito de ar.
Correr.
Rir.
Chorar.
Intensamente.
Desmesuradamente.

A Vida.


Susana Soares

12 de Dezembro de 2007

Café
Quem foi o arquitecto

que fez este Café
tão longe da natureza
e tantos homens de pé?
Criado: põe esta gente na rua!
E abre um buraco no tecto
que eu quero ver a lua.

José Gomes Ferreira

Exercício um


Mulher ao espelho, Picasso

Falemos de corpo.
Falemos de Deus.
Mas Deus não tem corpo
E teimam que ele existe.
Eu existo. E tenho corpo.
E não sou Deus.
Para quem tem um Deus
E é branco, Deus branco é.
Para quem é preto,
Deus preto é.
Mas sempre velho.
Mas sempre Homem.

Porque a mulher é a luxúria,
É o pecado, é dar.
Porque ser novo é perigoso,
Lembra a revolução, é forte.
Fizeram Deus
à vossa imagem e semelhança.
Deus odeia o corpo.
E o meu corpo odeia Deus.
Em sonhos sou odalisca,
Coberta com véus,
Para me descobrir.
O meu sexo não é o dos anjos,
Que só são anjos por não terem sexo.
E têm penas.
E têm pena.
Apenas.

Sou mulher.
Com prazer.
Com querer.
E só os anjos,
por não terem sexo,
nos pedem, com pena:
“Não nos deixeis cair em tentação
E livrai-nos do mal”.

Amen.


Susana Soares
2002

Encontro


Fugiste do mar numa noite de chuva
Roubaste as estrelas para te cobrires
A lua, do alto, sorriu-te baixinho
E o vento quente mostrou-te o caminho

Trazias conchinhas na palma da mão
E um raio de sol na tua canção

A rosa-dos-ventos perdeu o Norte
E então o sul trocou com o Oeste
Viciaste os dados da tua sorte
E o sol nasceu porque tu quiseste

Trazias conchinhas na palma da mão
E um raio de sol na tua canção

Quando acordei vi-te a brincar
Com corpo de espuma e riso de mar
E então fui peixe, fui onda, fui lua
Fui fruta de verão caindo madura

Trazias conchinhas na palma da mão
E um raio de sol na tua canção

Dei-te os meus olhos, as asas, o mundo
Descobri o tempo no rio mais fundo
Dancei contigo no meio da rua
E a canção que eu ouvia,
Afinal,
Era a tua.


Susana Soares
2001