sexta-feira, 23 de maio de 2008

Memórias


Ester esquecera tudo. Ou quase tudo. Apenas não o sabia.
Todos os dias se levantava cedo, puxava os lençóis para trás e punha a cama a arejar.
Abria a janela, batia as almofadas para a rua, ajeitava-as e guardava-as meticulosamente no guarda-vestidos, já quase insufladas como balões, fofas e apetecíveis.
Achava curioso a almofada do marido nunca estar tão marcada como a sua. Enfim, sempre tivera um sono pesado, muito mais do que Carlos, que mal raiava o dia já estava de pé, a vestir-se de costas para a cama, vestígios da educação e do pudor que sempre tivera.
Vestia-se, tomava o café à janela, olhando o Tejo que se estendia ao longe, enquanto ia trincando uns biscoitos de canela (os seus favoritos e que Ester fazia tão bem).
Pegava então no casaco e voltava ao quarto, beijava Ester na testa e saía pé ante pé para não a acordar, sem se aperceber do breve sorriso que aflorava os lábios adormecidos de Ester.
Enquanto descia as escadas, Carlos acendia um cigarro e dispunha-se a começar o dia. Entrava então na rua, desaparecendo na multidão.
Quando Ester acordava já Carlos não estava. Viria à noite, quando acabasse o serviço, quantas vezes já depois de Ester se deitar, mas nunca sem antes deixar o jantar guardado no forno, embrulhado em jornal, a mesa posta, o copo e a garrafa de vinho eternamente encetada em cima da mesa.
Esticava os vincos da toalha com um esmero quase obsessivo, impregnado de uma mescla de saudade terna e solidão resignada, acertava a posição dos talheres e do prato para não descentrar dos cestinhos de fruta bordados na toalha, escondia aquela maldita queimadela de cigarro com a base do copo e olhava, embevecida, para a perfeição da sua obra, a perfeição do seu amor.
Não tardaria que Carlos chegasse, e assim que sentisse a chave na porta poderia adormecer profundamente. Tudo estaria bem.

De manhã, depois dos lençóis puxados para trás, da janela aberta e das almofadas batidas, Ester abria o guarda-vestidos, pousava as almofadas e demorava-se então em frente ao espelho embutido na parte de dentro da porta, já com uma ou outra manchas de ferrugem a acusar a idade do móvel. Ajeitava os caracóis arduamente conseguidos graças aos rolos da menina Isabel que, enquanto segurava entre-dentes os alfinetes com cabeça de plástico colorida que prendiam as mechas de cabelo aos rolos, ia contando histórias e casos da vida do bairro, nunca sem deixar sair um ou outro “eu cá sempre achei estranho”, ou “eu sempre disse”, ou um profético “cada um sabe de si, e Deus sabe de todos”.
Quando ouvia esta tirada, Ester mordia-se sempre para não responder “olha que eu cá nem sempre sei de mim, e cheira-me que Deus também não!”. Mas não dizia nada. Limitava-se a abanar o leque com mais afinco.
Ester ansiava sempre pelo momento do secador, não por ser particularmente agradável mas por ser a única altura em que a menina Isabel falava sem voz, e então Ester divertia-se a ver os lábios da menina Isabel a mexer e a pôr-lhe na boca coisas que ela jamais diria…
Mas isto era no tempo em que Ester achava que valia a pena zangar-se e rir-se.
Agora Ester já não se zangava nem se ria. Apenas suspirava, concentrada nos vincos da sua saia plissada.
É verdade, onde estará a saia? Vou procurá-la, não passa de hoje.
E fechava então a porta do guarda-vestidos que também guardava as almofadas e a imagem de Ester dentro do espelho, também ela já com uma ou outra mancha a acusar a idade.
Dirigia-se então à casa de banho, onde se arranjava e se pintava com o batom vermelho de que nunca se esquecia, porque uma mulher sem pintura é como um esboço de um quadro, e nunca ninguém se importa com um esboço de um quadro, como lhe dissera uma vez Carlos. E Ester amava Carlos.
Disso ela jamais se esqueceria.

Ester voltava à janela, à mesma janela onde tinha batido as almofadas, à mesma janela onde Carlos gostava de tomar o café enquanto contemplava o Tejo e sonhava a vida, e pensava que tinha que fazer mais biscoitos de canela.
Ester nunca se lembrava que tinha latas e latas cheias de biscoitos de canela, nem reparava que a mesa do jantar se mantinha intacta, nem que há muito tempo não ouvia a chave na fechadura.
Ester vivia numa espécie de limbo de que só ela conhecia as coordenadas.
E isso não a perturbava, até porque ela não se apercebia disso. Aliás, dava-lhe uma paz invejável.
Mesmo quando foi para o Lar.
Sobretudo quando foi para o Lar.
Até porque lá lhe compunham os caracóis sem ter que aturar os vaticínios da menina Isabel.
Até porque lá encontrara a sua saia plissada.
Até porque lá tinham muitos espelhos onde ela se podia pintar.
Até lá tinham uma toalha com cestinhos de fruta bordados…
Não tardaria que Carlos chegasse, e assim que sentisse a chave na porta poderia adormecer profundamente. Tudo estaria bem.

Susana Soares
22.05.08

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A sétima onda


Lluvia (Chuva), óleo sobre tela, 1997

Jaime Alberto Franco (Cali, 1963)


Por uma vez decido ceder.
Abandonar-me à chuva que cai. Esquecer a pressa, o desconforto da roupa colada à pele, a humidade entranhada na alma como se fosse mofo.
Abrando o passo, acerto a respiração com o ritmo das gotas que caem.
Paro.
Agora a nuvem sou eu. Sou eu quem chove. É a minha alma que se desfaz em água.
E, pela primeira vez em muito tempo, sinto-me una. Sinto-me EU.
Agora, mais do que nunca, a roupa é um estorvo, os sapatos um absurdo por resolver.
Descalço-me.
Dispo-me.
Sinto a chuva a beijar-me a pele, a escorrer-me pelo corpo, a infiltrar-se insidiosamente em cada poro.
E um desejo de abandono dos sentidos torna-se um imperativo. Já não sou eu quem comanda os meus passos.
Uma sede de mar, de ondas, de marés vivas dentro de mim vão gritando até todo o mundo ser uma massa sonora, um pedido de ajuda impossível de ignorar.
Olho a orla da praia uma última vez. Dirijo agora o meu olhar para o horizonte, a linha cinza e difusa em que o céu e o mar se tocam.
A chuva continua, incessante, como se viesse do princípio do mundo.
É inevitável o meu caminho.
Tão inevitável como a chuva que cai, dolente e lasciva.
Respiro fundo uma última vez e avanço.
A chuva cai, mas já não a sinto.
Misturo-me com o mar.
Já não sinto a água a tocar-me a pele.
Fundimo-nos.
Espero então a sétima onda para ganhar escamas prateadas e poder mergulhar.


Susana Soares
21.05.08