sábado, 31 de março de 2012

Mínimo múltiplo comum

Um passado comum.
Um passado mais nebuloso nos factos que nas memórias.
Vidas distantes, tão mais próximas agora que alguma vez teriam sido.
Uma seguiu literaturas, a outra matemáticas.
Na vida de ambas, os números trocaram-lhes as voltas à volta das letras da Primeira palavra.
Em ambas a Dor.
Em ambas a Perda.
E ao fim de tantos anos, o reencontro.
As tristes novas.
Lágrimas por fora, lágrimas por dentro.
E a constatação do facto: a Vida faz-nos mais do que aquilo que somos.

É esse o nosso mínimo múltiplo comum.
A nossa génese.
O nosso recomeço.

E as memórias da minha/nossa infância ganham cor...


Susana Soares
31 de março de 2012

segunda-feira, 21 de março de 2011

Vai-te, Poesia!

Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia!

Não quero cantar.
Quero gritar!

José Gomes Ferreira

(Porque às vezes o lirismo é oco e estéril. Porque às vezes o melhor canto é o grito das entranhas. Porque há mais beleza no rasgar da carne que no rasgar de seda. Porque a Poesia também é sangue. É dor. É revolta. E é por isso que hoje, mais que nunca é precisa a Poesia!
Susana Soares, 21 de Março de 2011, Dia Mundial da Poesia)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

José Saramago, 1922-2010

E uma lágrima de saudade que teima em não cair.

Talvez porque seja cedo.
Talvez porque a ternura que por ele sinto me deixe sobretudo grata por ele ter existido.
Talvez porque a admiração que lhe tenho faça dele pouco mortal.
Talvez porque ficará para sempre no panteão dos meus afectos.
Talvez porque um dia ainda vá a Lanzarote deixar-lhe uma flor vermelha.

Talvez porque.

Obrigada.



18.06.2010
Susana Soares

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Santa Bárbara Bendita...



Oh meu amor... se te pudesse ver mais uma vez...




Doem-me os pulmões, doem-me tanto!


É como se cada vez que respirasse morresse mais um pouco, é como se respirasse veneno!


Não te volto a ver, já sei, por isso faz o que te peço.




Beija por mim os olhos dos nossos filhos, beija-os e engole-lhes as lágrimas antes que lhes caiam dos olhos, antes que percebam que ainda são crianças, antes que suspeitem que podiam ter um futuro mais feliz.




Canta por mim ao nosso filho que trazes no ventre a música que me embalou toda a vida, a mim e aos meus camaradas do luto do carvão:


"Santa Bárabara bendita,
Padroeira dos Mineiros,
vê lá!
Vê lá, companheiro, vê lá!
Vê lá como venho eu...
Trago a cabeça aberta
que me abriu uma barreira,
vê lá!
Vê lá companheiro, vê lá!
Vê lá como venho eu...
Trago a camisa rota
e o sangue de um camarada,
vê lá..."



Hoje o sangue vai ser o meu.




Vai secar em postas.




Vou ser só mais um a morrer aqui debaixo.





Não me esqueças, meu amor.







Doem-me os pulmões.



Falta-me o ar...




O ar é veneno...








Respira por mim...






Abre as janelas de par em par...





Ajuda os nossos filhos a ganhar asas...





Faz com que a única coisa limpa da minha vida não seja o lençol que me há-de envolver quando sair daqui.







Faz com que minha vida não tenha sido estúpida do princípio ao fim.






Amo-te.








Susana Soares

16.11.09





quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Já não gosto dos penáltis


Não gosto de futebol, nunca gostei.

Excepto em duas situações: no Mundial de Saltillo, porque ficava acordada de madrugada com o meu pai a comer tremoços e a beber Trinaranjus de ananás, e porque tinha uma caderneta de cromos das selecções e dos jogadores que comprava no Sr. Quirino, e nos penáltis, porque poupavam a seca dos noventa minutos mais descontos sem nada de verdadeiramente interessante para ver.

Até ontem, pararia em frente à televisão se me dissessem que iam decidir o jogo a penáltis.

Hoje não.

Hoje foi dito claramente nas notícias o que ontem ficou nas entrelinhas da morte de Robert Enke: suicidou-se.

E eu, que não gosto de futebol, nem sei que perda desportiva foi a da vida deste rapaz de trinta e dois anos, fui assaltada por um peso enorme no coração.

O peso de quem se sente esmagada pelo desgosto que leva a um fim assim.

O peso de um silêncio que transbordou as capacidades físicas de o suportar.

O peso da dor que se sobrepôs a uma filha adoptiva de oito meses, a uma companheira que ficou ao seu lado, tentando reconstruir um mundo irremediavelmente destruído pela morte de uma filha de dois anos, com problemas cardíacos.

O peso de quem entende que há dramas interiores que escurecem por dentro qualquer coração, por muito iluminado que se seja pelas luzes da ribalta, pelo carinho dos outros, pelo reconhecimento do valor de cada um.

Este rapaz, que deve ter livrado muitas vezes as suas equipas da morte súbita dos penáltis, não se pôde livrar a si.

E é por isso que deixei definitivamente de gostar dos penáltis.

Porque deixaram de ser para mim a diferença entre a morte súbita e a morte lenta.
Susana Soares
11.11.09

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Atestado de incapacidade permanente


Não sei não ser metódica. É algo que me transcende.
Como a poesia.
Não sei deixar-me ir ao sabor do futuro.
O futuro ideal para mim deveria pré-existir no passado, como garantia do presente no futuro.
A deriva é para mim tão sedutora e inalcançável como o abraço das nuvens.

Queria, às vezes, ser fragmentária.
Não o sou.
Vivo, por isso mesmo, de fragmentos da realidade em que vou tropeçando.
E com os quais, quase obsessivamente, vou tentando (re)construir o meu céu.
Não consigo ser diferente.
E não sei se quero.

Só sei que em mim habita o albatroz de Baudelaire.

E que há dias em que isso me faz feliz.

Susana Soares
23.09.2009

sexta-feira, 20 de março de 2009

Nómada (Hoje)

Foto de Sebastião Salgado

Hoje.
Hoje trazes contigo a tristeza do mundo.
Carregas sobre os ombros o peso do caminho que foste traçando através de todos os percursos que te foram vedados.
Hoje ecoam na tua memória as ondas das marés vivas de onde nasceste.
Hoje não há brisa que corra ou murmúrio que te sobressalte.
Hoje trazes a alma daltónica.
Hoje a estrada é recta sem hipótese de desvios ou escapatórias de emergência.
Hoje o horizonte é um deserto sem oásis.
Hoje trazes agrilhoado o futuro imperfeito que te tomou de assalto.
Hoje estás de fora dos teus sonhos.
Hoje és nómada em ti.

Hoje.

Susana Soares
20.03.09