Margarida era uma fatalidade.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.
Sempre assim fora. Mesmo antes de nascer.
A mãe de Margarida, Rosa de nome, não tinha grande jeito para a maternidade, e quando soube que estava grávida chorou convulsivamente durante sete dias. Depois fartou-se de chorar e jurou que nunca mais verteria uma lágrima por causa daquela criatura que lhe tinha vindo estragar a vida. Aliás, Rosa decidiu nesse dia que nunca iria ser mãe. Assim, durante os penosos seis meses que se seguiram, nunca mais Rosa se preocupou com aquele ser cada vez menos minúsculo que a ia tentando dominar, ocupando-lhe as entranhas, e despertando sentimentos piegas a quem a rodeava.
Até ao dia em que acordou encharcada entre as pernas e percebeu que a criança ia nascer.
De cócoras ao pé da cama, sem um grito, mordeu as almofadas e fez força até aquela criatura sair.
Era Margarida que resolvera ser gente.
E Rosa, extenuada pelo esforço e pelo desgosto de não poder continuar a ignorar que tinha uma filha, num momento de fraqueza decidiu que a menina que ali estava se chamaria Margarida, como a bisavó. Talvez isso a protegesse dos males do mundo.
Depois recobrou forças, vestiu-se e, enrolando Margarida num lençol, levou-a à mãe e disse-lhe: “Tens aqui a tua neta. Chama-se Margarida, como a tua avó. Pode ser que assim gostes dela o que não gostaste de mim”. Virou costas e saiu.
De casa.
Da frente da mãe, ainda boquiaberta.
Da vida de Margarida.
Não voltou a aparecer.
Ainda escreveu algumas cartas. Sete, ao todo. Em todas dizia que estava bem e que não se preocupassem com ela. Em todas esperava que estivesse tudo bem lá por casa. Em nenhuma falou de Margarida.
Enfim, diriam os que a conheceram que Rosa nunca fora flor que se cheirasse.
Mas deixemos Rosa com os seus espinhos e voltemos a Margarida.
Criança pouco expansiva, desde cedo se revelara uma preocupação para a avó, que, dividida entre um amor genuíno à neta e um sentimento de culpa por uma culpa que não era dela mas que nem por isso a deixava dormir, tentava ser para a neta o que, pelos vistos, não fora para a filha. E tinham desenvolvido, entre elas, uma cumplicidade muda que lhes ia preenchendo os vazios no coração com bocadinhos de bem-querer.
Era frequente ver as duas, em dias de chuva, sentadas em silêncio lado a lado enquanto seguiam com os olhos as gotas grossas que iam escorrendo pelas vidraças da janela, cada uma com as suas gotas, dentro e fora dos olhos, umas e outras convergindo para pequeninos rios até que estes se juntavam num riozinho maior, com força suficiente para não deixar isoladas gotas perdidas, lavando um pouco à sua passagem. Dentro e fora dos olhos. De avó e neta. E depois levantavam-se, mesmo sem se olharem, e iam tratar das suas coisas. Sem uma palavra. Apenas um pouco mais reconfortadas.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.
Sempre assim fora. Mesmo antes de nascer.
A mãe de Margarida, Rosa de nome, não tinha grande jeito para a maternidade, e quando soube que estava grávida chorou convulsivamente durante sete dias. Depois fartou-se de chorar e jurou que nunca mais verteria uma lágrima por causa daquela criatura que lhe tinha vindo estragar a vida. Aliás, Rosa decidiu nesse dia que nunca iria ser mãe. Assim, durante os penosos seis meses que se seguiram, nunca mais Rosa se preocupou com aquele ser cada vez menos minúsculo que a ia tentando dominar, ocupando-lhe as entranhas, e despertando sentimentos piegas a quem a rodeava.
Até ao dia em que acordou encharcada entre as pernas e percebeu que a criança ia nascer.
De cócoras ao pé da cama, sem um grito, mordeu as almofadas e fez força até aquela criatura sair.
Era Margarida que resolvera ser gente.
E Rosa, extenuada pelo esforço e pelo desgosto de não poder continuar a ignorar que tinha uma filha, num momento de fraqueza decidiu que a menina que ali estava se chamaria Margarida, como a bisavó. Talvez isso a protegesse dos males do mundo.
Depois recobrou forças, vestiu-se e, enrolando Margarida num lençol, levou-a à mãe e disse-lhe: “Tens aqui a tua neta. Chama-se Margarida, como a tua avó. Pode ser que assim gostes dela o que não gostaste de mim”. Virou costas e saiu.
De casa.
Da frente da mãe, ainda boquiaberta.
Da vida de Margarida.
Não voltou a aparecer.
Ainda escreveu algumas cartas. Sete, ao todo. Em todas dizia que estava bem e que não se preocupassem com ela. Em todas esperava que estivesse tudo bem lá por casa. Em nenhuma falou de Margarida.
Enfim, diriam os que a conheceram que Rosa nunca fora flor que se cheirasse.
Mas deixemos Rosa com os seus espinhos e voltemos a Margarida.
Criança pouco expansiva, desde cedo se revelara uma preocupação para a avó, que, dividida entre um amor genuíno à neta e um sentimento de culpa por uma culpa que não era dela mas que nem por isso a deixava dormir, tentava ser para a neta o que, pelos vistos, não fora para a filha. E tinham desenvolvido, entre elas, uma cumplicidade muda que lhes ia preenchendo os vazios no coração com bocadinhos de bem-querer.
Era frequente ver as duas, em dias de chuva, sentadas em silêncio lado a lado enquanto seguiam com os olhos as gotas grossas que iam escorrendo pelas vidraças da janela, cada uma com as suas gotas, dentro e fora dos olhos, umas e outras convergindo para pequeninos rios até que estes se juntavam num riozinho maior, com força suficiente para não deixar isoladas gotas perdidas, lavando um pouco à sua passagem. Dentro e fora dos olhos. De avó e neta. E depois levantavam-se, mesmo sem se olharem, e iam tratar das suas coisas. Sem uma palavra. Apenas um pouco mais reconfortadas.
Fatalmente, chegou o dia em que Margarida perguntou à avó pela mãe.
Fatalmente, chegou o dia em que a avó de Margarida teve que dizer à neta que não sabia da filha e que isso lhe doía mais do que a morte.
Fatalmente, chegou o dia em que Margarida e a avó choraram agarradas uma à outra, já sem procurar refúgio nas gotas grossas de chuva que iam escorrendo pelas vidraças da janela.
E finalmente chegou a noite em que a avó de Margarida percebeu que a culpa não era dela e adormeceu em paz.
Percebera, finalmente, que tudo fora apenas uma fatalidade.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.
Como Margarida.
Susana Soares
18 de Março de 2008
Fatalmente, chegou o dia em que a avó de Margarida teve que dizer à neta que não sabia da filha e que isso lhe doía mais do que a morte.
Fatalmente, chegou o dia em que Margarida e a avó choraram agarradas uma à outra, já sem procurar refúgio nas gotas grossas de chuva que iam escorrendo pelas vidraças da janela.
E finalmente chegou a noite em que a avó de Margarida percebeu que a culpa não era dela e adormeceu em paz.
Percebera, finalmente, que tudo fora apenas uma fatalidade.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.
Como Margarida.
Susana Soares
18 de Março de 2008
1 comentário:
"O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum nunca o fará"
Confúcio (sábio da china antiga)
Como Margarida, nasceram muitas raparigas e rapazes.
Acho, pelo que dizem, que os nossos avos sempre foram mais meigas com os netos do que com os filhos.
Sempre ouvi dizer da boca da minha mãe, que o açúcar que a mãe dela me dá é mais doce do que o açúcar que lhe dava.
Nunca percebia e mesmo repetindo a pergunta, “o que queres dizer com isso?”, respondia-me com frase que não percebia. O açúcar era igual…
O açúcar a que ela se referia não passava de noites em que estava doente, e a minha avo a meu lado, sentada numa cadeira toda a noite acordada. Seroes que fazia, ali… sentada numa pequena cadeira, a olhar por mim.
Este não é o assunto que me fez chorar.
Acho que a cobardia de uma mãe abandonar uma filha é a mais cruel das cobardias.
Por mais dificuldades que aconteçam, por mais sofrimento que pudesse existir, um filho é uma dádiva. Uns davam tudo para ter um filho, outros dão tudo para se livrar deles.
Acho que nos, humanos, somos uma espécie complicada. Uns cobardes, uns combatentes.
Mãe de Rosa, não tratou da melhor forma a sua filha, mas os pais fazem tudo para os proteger acabando-os por sufocar e as vezes essa protecção é mal feita.
Uns pais pintam um mundo de rosa, cheiro de bondade… outros pintam-no mais preto que o carvão, de crueldade.
Com os netos, a idade é outra, já a aprendizagem está feita. O açúcar torna-se mais doce, dando o melhor de si, não sufocando ninguém.
Sinal de maturidade é reconhecer que se o pai falhou, o filho também.
Se a culpa é do pai, o filho também tem culpa.
Mas… aquela mãe tem coração negro, abandonar uma filha, nos braços de sua mãe dizendo:
“Tens aqui a tua neta. Chama-se Margarida, como a tua avó. Pode ser que assim gostes dela o que não gostaste de mim”.
É de uma brutalidade fatal.
A mãe de Rosa e a filha de Rosa ganharam algo que nunca se destruirá, uma forte amizade e cumplicidade.
No lugar de Margarida, todos nós pensamos que a culpa é nossa, não sendo.
Humanos são tão diferentes, não se entendem magoando-se.
Maldita necessidade de falar, sentir e pensar. Sem isso tudo seria mais fácil? Ou seria um mundo pior do que o que já estamos?
Excedi-me com o comentário, mas faltou muita coisa por dizer.
Espero que a sua mãe não tenha piorado, já que as melhoras nunca são coisas de se dizer e resto de boas férias (quer dizer das aulas :D)
Beijinhos,
Marta Santos
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