Sim. Tudo seria realmente mais fácil se fosse igual aos demais.
Mas não era.
E tal evidência doía-lhe na carne – na carne, que a alma tê-la-ia perdido há já muito, se alguma vez a tivesse tido, assim vaticinara o Padre Rafael numa eucaristia raivosa de Semana Santa. E a prova disso mesmo é que a alma não lhe doía, e se não lhe doía era porque não existia.
Pelo menos sempre tinha tido esta máxima por verdade. A mãe, mulher prática e pouco dada a transcendências, só se apegava a S. Tomé porque ele sim, era dos dela, ou bem que havia provas ou então nada feito, ver p’ra crer, sim senhora, agora assim, rezar às cegas, hipotecar uma vida inteira à espera de um bem eterno de onde nunca ninguém veio para contar, santa paciência, ainda por cima começava-se a vida já a dever, raios partam aquela treta do pecado original, é bom e basta, e se formos a ver bem de original tem pouco ou nada, ou não tivéssemos nascido todos da mesma maneira, mais grito menos grito. Enfim, fosse por essa ou outra razão, a verdade é que o Padre Rafael nunca lhe tinha perdoado a bolada ao vitral da Nª Senhora que estava por trás do púlpito e desde esse dia tinha o prazer mórbido de lhe falar das crianças desalmadas que mal chegavam ao Juízo Final eram arrancadas dos braços das mães que, pelo desgosto, nunca sairiam do Purgatório na esperança vã de recuperar os seus meninos e acabavam por enlouquecer.
Cláudio cresceu então aterrorizado com o sofrimento que irremediavelmente provocaria à sua mãe por não ter alma. Durante anos vigiou religiosamente o seu quarto, paredes e sombras, na esperança de ver algo de se assemelhasse a uma alma, qual Peter Pan entrado pela janela da Wendy atrás da sua sombra, mas sem sucesso. Nada fazia crer que houvesse uma alma perdida à sua procura. Não via nada, não sentia nada. Nem um bocadinho, nem ao respirar, nem quando ficava muito quietinho na cama, um olho fechado e outro aberto, a ver se a via espreitar atrás do espelho do toucador ou do cortinado amarelo com barquinhos azuis. Nada.
Assim, um dia Cláudio desistiu de esperar.
A custo, aceitou o seu destino de pecador desalmado e aprendeu a resignar-se, a baixar a cabeça e os braços quando passava na rua e era apupado e agredido pelos colegas de escola, jovens que aplicavam a mesma devoção a rezar o Pai-Nosso e a infernizar a vida de Cláudio.
Só, triste e ostracizado, Cláudio ocupava o seu tempo a inventar um mundo onde não houvesse vitrais que se partissem com boladas acidentais, onde as almas não se despegassem dos pés dos meninos que fizessem disparates, onde houvesse um Cérbero raivoso para cada Padre Rafael, que fizesse com todos os dentes das três cabeças a justiça que Cláudio sentia faltar.
Claro que, numa espiral de culpa, cada vez mais Cláudio se afastava dos outros, e cada vez mais os outros temiam Cláudio pela diferença que ele representava.
E foi assim que um dia de manhã Cláudio partiu à procura da sua alma. Mais do que a falta que lhe fazia, preocupava-o a falta que ela faria à mãe no dia do Juízo Final.
Durante anos errou pelo mundo, em ocupações nem sempre dignificantes, mas sempre guiado pelo mesmo propósito – salvar a mãe da loucura e do Purgatório.
Até um dia. O dia em que desistiu.
Deixara-se enfim levar pela corrente.
Costas curvadas, olhos errantes, gestos trémulos, foi assim que Cláudio entrou no armazém onde davam sopas e pão aos indigentes.
Esperou a sua vez na fila, esfregando as mãos para enganar o frio e a dormência, com as vozes disformes ecoando nos seus ouvidos. Ouvia dezenas de conversas cruzadas, algumas com interlocutores reais, outras que esperavam indefinidamente resposta.
Quando finalmente chegou a sua vez, estendeu as mãos para agarrar o que lhe ofereciam e agradeceu, com os olhos rasos de vergonha e desamparo.
Foi sentar-se numa mesa onde estava já um outro homem, sexagenário, que não parava de se queixar do sapato que lhe apertava o pé direito.
Era o Sr. Álvaro. Homem afável, certamente habituado a conhecer novos companheiros de mesa a cada jantar, ignorou o olhar cabisbaixo de Cláudio e falou, quase ininterruptamente, dos males que o achacavam por causa dos diabretes que tinha no sangue e que lhe tinham roubado a vida e um pé.
Cláudio levantou então os olhos da malga de sopa e olhou para debaixo da mesa. O pé que lhe faltava era o direito, precisamente aquele de que se queixava por ter o sapato apertado.
Uma alegria indescritível apoderou-se de Cláudio que, instintivamente, abraçou e beijou o Sr. Álvaro, que não percebia nada do que se estava a passar, mas que percebia que tinha saudades de que o abraçassem assim, tantas quantas Cláudio tinha da sua mãe e do cortinado amarelo com barquinhos azuis do seu quarto ou dos mundos que aí inventava.
O Sr. Álvaro, a quem tinham amputado o pé direito por causa da diabetes, continuava a sentir claramente os joanetes. Fora um alívio saber disso. Se podia haver dor sem pé, também ele podia ter alma mesmo que só lhe doesse a carne.
Afinal sempre havia salvação!
Susana Soares
06.10.08
Mas não era.
E tal evidência doía-lhe na carne – na carne, que a alma tê-la-ia perdido há já muito, se alguma vez a tivesse tido, assim vaticinara o Padre Rafael numa eucaristia raivosa de Semana Santa. E a prova disso mesmo é que a alma não lhe doía, e se não lhe doía era porque não existia.
Pelo menos sempre tinha tido esta máxima por verdade. A mãe, mulher prática e pouco dada a transcendências, só se apegava a S. Tomé porque ele sim, era dos dela, ou bem que havia provas ou então nada feito, ver p’ra crer, sim senhora, agora assim, rezar às cegas, hipotecar uma vida inteira à espera de um bem eterno de onde nunca ninguém veio para contar, santa paciência, ainda por cima começava-se a vida já a dever, raios partam aquela treta do pecado original, é bom e basta, e se formos a ver bem de original tem pouco ou nada, ou não tivéssemos nascido todos da mesma maneira, mais grito menos grito. Enfim, fosse por essa ou outra razão, a verdade é que o Padre Rafael nunca lhe tinha perdoado a bolada ao vitral da Nª Senhora que estava por trás do púlpito e desde esse dia tinha o prazer mórbido de lhe falar das crianças desalmadas que mal chegavam ao Juízo Final eram arrancadas dos braços das mães que, pelo desgosto, nunca sairiam do Purgatório na esperança vã de recuperar os seus meninos e acabavam por enlouquecer.
Cláudio cresceu então aterrorizado com o sofrimento que irremediavelmente provocaria à sua mãe por não ter alma. Durante anos vigiou religiosamente o seu quarto, paredes e sombras, na esperança de ver algo de se assemelhasse a uma alma, qual Peter Pan entrado pela janela da Wendy atrás da sua sombra, mas sem sucesso. Nada fazia crer que houvesse uma alma perdida à sua procura. Não via nada, não sentia nada. Nem um bocadinho, nem ao respirar, nem quando ficava muito quietinho na cama, um olho fechado e outro aberto, a ver se a via espreitar atrás do espelho do toucador ou do cortinado amarelo com barquinhos azuis. Nada.
Assim, um dia Cláudio desistiu de esperar.
A custo, aceitou o seu destino de pecador desalmado e aprendeu a resignar-se, a baixar a cabeça e os braços quando passava na rua e era apupado e agredido pelos colegas de escola, jovens que aplicavam a mesma devoção a rezar o Pai-Nosso e a infernizar a vida de Cláudio.
Só, triste e ostracizado, Cláudio ocupava o seu tempo a inventar um mundo onde não houvesse vitrais que se partissem com boladas acidentais, onde as almas não se despegassem dos pés dos meninos que fizessem disparates, onde houvesse um Cérbero raivoso para cada Padre Rafael, que fizesse com todos os dentes das três cabeças a justiça que Cláudio sentia faltar.
Claro que, numa espiral de culpa, cada vez mais Cláudio se afastava dos outros, e cada vez mais os outros temiam Cláudio pela diferença que ele representava.
E foi assim que um dia de manhã Cláudio partiu à procura da sua alma. Mais do que a falta que lhe fazia, preocupava-o a falta que ela faria à mãe no dia do Juízo Final.
Durante anos errou pelo mundo, em ocupações nem sempre dignificantes, mas sempre guiado pelo mesmo propósito – salvar a mãe da loucura e do Purgatório.
Até um dia. O dia em que desistiu.
Deixara-se enfim levar pela corrente.
Costas curvadas, olhos errantes, gestos trémulos, foi assim que Cláudio entrou no armazém onde davam sopas e pão aos indigentes.
Esperou a sua vez na fila, esfregando as mãos para enganar o frio e a dormência, com as vozes disformes ecoando nos seus ouvidos. Ouvia dezenas de conversas cruzadas, algumas com interlocutores reais, outras que esperavam indefinidamente resposta.
Quando finalmente chegou a sua vez, estendeu as mãos para agarrar o que lhe ofereciam e agradeceu, com os olhos rasos de vergonha e desamparo.
Foi sentar-se numa mesa onde estava já um outro homem, sexagenário, que não parava de se queixar do sapato que lhe apertava o pé direito.
Era o Sr. Álvaro. Homem afável, certamente habituado a conhecer novos companheiros de mesa a cada jantar, ignorou o olhar cabisbaixo de Cláudio e falou, quase ininterruptamente, dos males que o achacavam por causa dos diabretes que tinha no sangue e que lhe tinham roubado a vida e um pé.
Cláudio levantou então os olhos da malga de sopa e olhou para debaixo da mesa. O pé que lhe faltava era o direito, precisamente aquele de que se queixava por ter o sapato apertado.
Uma alegria indescritível apoderou-se de Cláudio que, instintivamente, abraçou e beijou o Sr. Álvaro, que não percebia nada do que se estava a passar, mas que percebia que tinha saudades de que o abraçassem assim, tantas quantas Cláudio tinha da sua mãe e do cortinado amarelo com barquinhos azuis do seu quarto ou dos mundos que aí inventava.
O Sr. Álvaro, a quem tinham amputado o pé direito por causa da diabetes, continuava a sentir claramente os joanetes. Fora um alívio saber disso. Se podia haver dor sem pé, também ele podia ter alma mesmo que só lhe doesse a carne.
Afinal sempre havia salvação!
Susana Soares
06.10.08