quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Carta de Amor

Era uma vez uma casa. Branca. Enorme. Cheia. Era uma vez um vira-vento a girar. Era uma vez um homem e uma mulher que se amaram sempre. Era uma vez um irmão desse homem que vivia escondido numa japoneira e que foi morto em casa, à frente da irmã, por assassinos da PVDE. Era uma vez um vira-vento a girar.
Era uma vez um homem e uma mulher que, tendo-se amado sempre, foram sempre amigos. Era uma vez três filhos desse homem e dessa mulher. Era uma vez um piano. Era uma vez um vira-vento a girar.
Era uma vez os filhos do homem e da mulher que se amaram sempre. Era uma vez os morangos no quintal. Era uma vez o baloiço no castanheiro. Era uma vez o casarinho e as voltas de bicicleta. Era uma vez o mirante e os foguetes às oito da manhã. Era uma vez (tantas vezes) a Black escondida dos foguetes. Era uma vez o vira-vento a girar.
Era uma vez a chuva a escorrer pelas janelas. Era uma vez o frio de Janeiro. Era uma vez o presépio com as setas viradas para os sítios certos, com os bonecos a avançar todos os dias um bocadinho. Era uma vez um pinheirinho a sério com velas a sério apagadas com cuspo nos dedos.
Era uma vez os "Parabéns a você" ao Menino Jesus na noite de Natal. Era uma vez o vira-vento a girar.
Era uma vez uma árvore para cada um dos netos do homem e da mulher que se amaram sempre. Era uma vez o Sr. António. Era uma vez o Sr. António em cima do vira-vento.
Era uma vez os relógios da casa parados. Quando morreu o homem. Quando morreu a mulher. Era uma vez uma casa cada vez maior. Era uma vez o vira-vento a girar.
Mas era uma vez os filhos dos netos do homem e da mulher que se amaram sempre.
E era uma vez, outra vez, o piano. E os morangos no quintal. E o baloiço no castanheiro. E o casarinho e as voltas de bicicleta. E o mirante e os foguetes às oito da manhã. E a chuva a correr pelas janelas. E o frio de Janeiro.
Era uma vez, outra vez, o vira-vento a girar.
Susana Soares
14 de Fevereiro de 2006

2 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Era uma vez um sonho desvanecido no espaço que era a casa, que era branca, enorme e cheia. Era uma vez o amor cultivado em grandes areais sombrios, sulcados de areia fina que escorria por mãos que outrora aconchegaram a vida de dois seres que se amaram sempre.Era uma vez o perpétuo marulhar misturado com o pingar da chuva. Era uma vez o vira-vento... sacudido pela brisa de Janeiro...e iluminado pelos foguetes das oito da manhã.
lembrei-me de Sophia:
«Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.»
Memórias?
Gostei muito!
Jinhos
Cristina Tomé