segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O anel (amor às avessas)



Encontrara-o por acaso, por entre o tapete de folhas do jardim que atravessava diariamente para ir para a escola. Para vir não, que já estava escuro e o jardim tornava-se perigoso. Pelo menos assim lhe dizia a tia Alberta, mulher seca e muito pouco dada a romantismos e a folhas caídas – nem às do jardim nem às do Garrett, um desavergonhado, um rabo de saias que só deu conta de que tinha alma e sentimentos nobres quando lhe faltou o viço. E então, vá de pedir perdão, a Deus e aos anjos, e já agora às mulheres de quem fez gato sapato, para não parecer mal. Os homens são todos iguais, valha-me Deus, não prestam para nada. Olha, o meu não me prestou nem para me fazer um filho, e agora é a minha irmã que me acolhe como quem acolhe um cão vadio, sabe-se lá se por pena se para provar que é melhor que os outros, mas seja como for não é por gostar de mim. Ah isso é certo, como dois e dois são quatro. E como se não bastasse o castigo da comiseração alheia, ainda levo com a miúda, e com os sonhos da miúda, e com as horas ao espelho da miúda, e com as horas ao telefone da miúda, e com a música aos altos berros da miúda, e com as manias da natureza da miúda, se já se viu isto, trazer para casa folhas mortas das árvores, nem para fazer estrume servem, só fazem lixo, é o que é, e eu é que tenho que o limpar. Sim, que isto é tudo muito bonito, mas se não fosse aqui a tia Alberta, que não presta para nada, quem ninguém vê, que cumprimentam por acaso quando chegam e saem de casa, isto não era uma casa, era uma pocilga. Ainda ontem, mal chegou a casa fechou-se no quarto e nem bom dia nem boa tarde, aquela garota é uma malcriada, é o que é. Ao jantar lá se dignou a aparecer, jantou, arrumou o prato e desapareceu outra vez para o quarto, enfim, o costume. Só não foi o costume quando lhe vi aquele anel na mão, aquele olhar terno na minha direcção, a mão estendida a dizer toma, fica com ele. P’ra que é que eu quero uma coisa dessas, Lena? Donde raio vem esse anel? Tu não me digas que o roubaste a alguém, Lena. Oh, valha-me Deus, a quem é que roubaste isso, Lena? Vai devolver imediatamente o anel antes que haja chatices, Lena! Tu não tens vergonha, Lena?

Depois o silêncio.
A voz de Lena a dizer que tinha encontrado o anel no jardim, por acaso, por entre o tapete de folhas do jardim que atravessava diariamente para ir para a escola. Para vir não, que já estava escuro e o jardim tornava-se perigoso. Como lhe ensinara a tia Alberta.
Qualquer coisa sobre um anagrama, sobre ler-se de trás para a frente, como Roma e amor, como anel e Lena.
E a sensação de a ter ouvido dizer que gostava da tia, e de ela nunca a ter deixado dar-lhe a mão, e de com aquele anel trazer a Lena pela mão.
Numa espécie de amor às avessas.

Susana Soares
28.01.08

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Alice

Metamorfose de Narciso, Salvador Dalí


Por trás do espelho, Alice sorri, convidativa.

Por trás do espelho, diz Alice, é tudo mais verdadeiro.

Por trás do espelho, garante Alice, encontra-se a plenitude.

Por trás do espelho, jura Alice, os morangos sabem a sol.

Por trás do espelho, promete Alice, não verteremos mais lágrimas.

Por trás do espelho, Alice faz caretas.



Ó Alice, por que não dizes a verdade?

Estás só, e estás farta, e os morangos sabem ao mofo das lágrimas que choraste para dentro.

Oh, Alice, como lamento a tua escolha de viveres uma vida asséptica, insípida, sem defeitos de fabrico...



Parte o espelho, Alice!

Rasga a carne, Alice!

Dilacera a alma, Alice!

Grita, Alice!

Anda, Alice, para o lado de cá do espelho!



Susana Soares

24.01.2008

domingo, 20 de janeiro de 2008

Teia de Penélope

Procuro a palavra certa
como se o ar me faltasse.
Vagueio pelas paredes
como se no branco me salvasse.
Começo pelo fim,
pelo Z (de zero),
querendo apenas
o A (de alvorada).
Tento o L de Lua
mas só chego ao Lodo.
E então recomeço.
Zumbem os ouvidos
com o silêncio que asfixia.
Cegam os olhos
com o brilho das palavras.
Fecho os olhos.
Volto a abri-los.
E, como por magia,
vejo aquela palavra.
Vejo a minha palavra.
A Palavra.
Num desenho informe
a palavra escreve-se,
descreve-se e desescreve-se.
E eu, palavra perdida
depois de achada,
recomeço-me, incessante,
como Teia de Penélope.

Susana Soares
04.06.1999

No quarto


No quarto roemos o sabor da fome
A nossa imaginação divaga entre paredes brancas
Abertas como grandes páginas lisas.
O nosso pensamento erra sem descanso pelos mapas
A nossa vida é como um vestido que não cresceu connosco.

Sophia de Mello Breyner Andresen

(A propósito da adolescência dos meus alunos.)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Carta de Amor

Era uma vez uma casa. Branca. Enorme. Cheia. Era uma vez um vira-vento a girar. Era uma vez um homem e uma mulher que se amaram sempre. Era uma vez um irmão desse homem que vivia escondido numa japoneira e que foi morto em casa, à frente da irmã, por assassinos da PVDE. Era uma vez um vira-vento a girar.
Era uma vez um homem e uma mulher que, tendo-se amado sempre, foram sempre amigos. Era uma vez três filhos desse homem e dessa mulher. Era uma vez um piano. Era uma vez um vira-vento a girar.
Era uma vez os filhos do homem e da mulher que se amaram sempre. Era uma vez os morangos no quintal. Era uma vez o baloiço no castanheiro. Era uma vez o casarinho e as voltas de bicicleta. Era uma vez o mirante e os foguetes às oito da manhã. Era uma vez (tantas vezes) a Black escondida dos foguetes. Era uma vez o vira-vento a girar.
Era uma vez a chuva a escorrer pelas janelas. Era uma vez o frio de Janeiro. Era uma vez o presépio com as setas viradas para os sítios certos, com os bonecos a avançar todos os dias um bocadinho. Era uma vez um pinheirinho a sério com velas a sério apagadas com cuspo nos dedos.
Era uma vez os "Parabéns a você" ao Menino Jesus na noite de Natal. Era uma vez o vira-vento a girar.
Era uma vez uma árvore para cada um dos netos do homem e da mulher que se amaram sempre. Era uma vez o Sr. António. Era uma vez o Sr. António em cima do vira-vento.
Era uma vez os relógios da casa parados. Quando morreu o homem. Quando morreu a mulher. Era uma vez uma casa cada vez maior. Era uma vez o vira-vento a girar.
Mas era uma vez os filhos dos netos do homem e da mulher que se amaram sempre.
E era uma vez, outra vez, o piano. E os morangos no quintal. E o baloiço no castanheiro. E o casarinho e as voltas de bicicleta. E o mirante e os foguetes às oito da manhã. E a chuva a correr pelas janelas. E o frio de Janeiro.
Era uma vez, outra vez, o vira-vento a girar.
Susana Soares
14 de Fevereiro de 2006

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O Mar e a Praia

O mar e a praia estão sempre perto um do outro.
Querem ambos aprender a falar, aprender a dizer
uma única palavra. O mar quer dizer "praia"
e a praia "mar". Cada vez estão mais próximos
da fala, depois de milhões de anos, de dizerem
aquela palavra solitária. Quando o mar disser "praia"
e a praia "mar",
a redenção virá ao mundo,
e o mundo retornará ao caos.

Yehuda Amichai (1924-2000), poeta israelita.

Um nome

Vou guardar as tuas mãos na paixão que tenho por ti,
mas näo te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber. Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos amarmo-nos. Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui. Pertencia a outra paixão, e já a esqueci. Dá-me tu um nome para eu poder ficar contigo...

Al Berto

Sem nada de meu

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem) . Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.

Rui Knopfli

Aurea mediocritas

Em tempos antigos, foi esta a máxima de vida de homens tão insignes como Horácio.
Em tempos antigos, a aurea mediocritas, que se pode traduzir como mediania dourada, era o caminho para alcançar a plenitude.

Em tempos antigos.

Desde então muito tempo passou, muitas mais voltas o mundo deu, muitas mais vezes se sonhou.
E eis-nos de novo atracados neste porto: aurea mediocritas. Desta feita, o caminho para alcançar a notoriedade. Ainda que oca. Ainda que fugaz.

Mas vamos por partes.
Mediocritas. Mediocritas, atis, nome latino da terceira declinação, caso nominativo, género feminino, número singular. Significa mediania, meio termo, mediocridade (sim, medíocre é o mesmo que mediano!...). Algo que não sai das normas. Que não transgride. Que não provoca. Que não tange as cordas da emoção. Que não leva ao frémito das asas a querer voar. Mediocritas. Assim mesmo.
Áurea. Aureus, a, um, adjectivo latino da primeira classe, caso nominativo, género feminino, número singular, grau normal. Significa dourada, de ouro.
Brilha, portanto.
Mas também se diz que nem tudo o que brilha é ouro.
E é verdade.
Sobretudo nos tempos que correm.

Vivemos num tempo de aurea mediocritas, em que a mediocridade impera. Desde que seja dourada.
Nunca como agora se viu tanta gente medíocre a brilhar. E com honras de primeira página.
Sim, que o que é preciso é aparecer e brilhar.
Mesmo que a notícia não seja notícia. Mesmo que a verdade do momento se apague quando se apagam as luzes das câmaras e da ribalta. Mesmo que o fundamental fique por dizer. (Sobretudo se o fundamental ficar por dizer.)

Cansa.
Tanto brilho cansa.
Tanto barulho cansa.
Tanto vazio cansa.

E uma vontade crescente de encher o peito de ar.
Correr.
Rir.
Chorar.
Intensamente.
Desmesuradamente.

A Vida.


Susana Soares

12 de Dezembro de 2007

Café
Quem foi o arquitecto

que fez este Café
tão longe da natureza
e tantos homens de pé?
Criado: põe esta gente na rua!
E abre um buraco no tecto
que eu quero ver a lua.

José Gomes Ferreira

Exercício um


Mulher ao espelho, Picasso

Falemos de corpo.
Falemos de Deus.
Mas Deus não tem corpo
E teimam que ele existe.
Eu existo. E tenho corpo.
E não sou Deus.
Para quem tem um Deus
E é branco, Deus branco é.
Para quem é preto,
Deus preto é.
Mas sempre velho.
Mas sempre Homem.

Porque a mulher é a luxúria,
É o pecado, é dar.
Porque ser novo é perigoso,
Lembra a revolução, é forte.
Fizeram Deus
à vossa imagem e semelhança.
Deus odeia o corpo.
E o meu corpo odeia Deus.
Em sonhos sou odalisca,
Coberta com véus,
Para me descobrir.
O meu sexo não é o dos anjos,
Que só são anjos por não terem sexo.
E têm penas.
E têm pena.
Apenas.

Sou mulher.
Com prazer.
Com querer.
E só os anjos,
por não terem sexo,
nos pedem, com pena:
“Não nos deixeis cair em tentação
E livrai-nos do mal”.

Amen.


Susana Soares
2002

Encontro


Fugiste do mar numa noite de chuva
Roubaste as estrelas para te cobrires
A lua, do alto, sorriu-te baixinho
E o vento quente mostrou-te o caminho

Trazias conchinhas na palma da mão
E um raio de sol na tua canção

A rosa-dos-ventos perdeu o Norte
E então o sul trocou com o Oeste
Viciaste os dados da tua sorte
E o sol nasceu porque tu quiseste

Trazias conchinhas na palma da mão
E um raio de sol na tua canção

Quando acordei vi-te a brincar
Com corpo de espuma e riso de mar
E então fui peixe, fui onda, fui lua
Fui fruta de verão caindo madura

Trazias conchinhas na palma da mão
E um raio de sol na tua canção

Dei-te os meus olhos, as asas, o mundo
Descobri o tempo no rio mais fundo
Dancei contigo no meio da rua
E a canção que eu ouvia,
Afinal,
Era a tua.


Susana Soares
2001