sábado, 19 de abril de 2008

Luz negra

"Mulher sentada a um espelho", de Kirchner


Falta menos de uma hora. Está quase.
Calma, Camila, calma!
Não te serve de nada entrar em pânico. Não te vais esquecer de nada. Lembra-te do que ele te disse. Respira fundo, conta até dez, conta até vinte, conta até te fartares de contar. Olha para o espelho e vamos, mão firme, não podes falhar o risco, não borres a pintura, não há tempo para recomeçar. Uma vez só. Mão segura, anda, aqui não há luxos, és tu que te maquilhas.

Estás velha, Camila, velha e gasta. E não saíste da cepa torta. Que miséria de vida! Saudade do cheiro da terra quente com chuva, de rebolar na relva, de enterrar os pés na areia. Saudades de sentir os olhos a seguir-te quando passavas. Saudades de te sentires bonita. Desejável. Desejada.
Então, Camila, segura as lágrimas, estás parva ou quê? Mão firme, Camila, pinta-te, vá, esquece isso, arruma as ideias, pousa-as em cima da mesa, pendura-as no cabide, guarda-as na gaveta, dobra-as ao pé da roupa e dos sapatos, faz o que quiseres mas livra-te de continuar a pensar nisso. As falas, Camila, não te esqueças das falas. E se te esqueceres não dês parte de fraca, Camila, respira fundo, mexe nos objectos de cena e retoma o discurso.

Credo, este vestido está cada vez mais coçado. Não sei se chega ao final da temporada. Tem de chegar, dê lá por onde der. Tem de chegar. Têm de chegar. O vestido e tu.
Anda, Camila, sai da frente do espelho, já chega! (Até nem ficou mal. Pelo menos, melhor que ontem. Já não é mau.) Costas direitas, Camila, vá. Está quase. Esquece tudo. Esquece a desilusão. Esquece o medo. Esquece a noite. Esquece as rugas. Esquece as mágoas. Esquece a solidão. Esquece que existes. Sobretudo isso. Esquece-te de ti.
E vai.
É agora. Não olhes para trás.

Merda.





Susana Soares
19.04.08


sábado, 12 de abril de 2008

Hiatos


M.C. Escher

E se não for verdade?
Pagar o infantário.
Não, não posso ir aí hoje. Tenho coisas para fazer.
Estou, mãe? Desculpa, não ouvi o telefone. Está tudo bem?
Sim, filho, prometo que da próxima vou.
A carta do adiamento. Não me posso esquecer.
Pagar a casa.
Bolas, o camião não sai da frente e já estou atrasada!
E se ela está a dizer a verdade?
A prestação do carro já deve ter caído.
Sim, um dia destes passo aí, está prometido.
Está tudo bem, sim, e contigo?
Eu sei, filho, mas tenho uma reunião, não posso.
A carta. Ainda não mandei a carta. Não me posso esquecer.
Comprar fraldas.
Aqui posso passar, o semáforo não funciona.
É demasiado escabroso. Será verdade?
Leite. Não há leite em casa.
Tenho que ver quando é que marquei os testes.
Sim, os meninos estão bem.
Combinamos assim, hoje podes adormecer comigo, queres?
Será possível?
O prazo está a acabar e falta quase tudo.
Obras, não faltava mais nada!
O que é que eu faço?
Tanto sono!
Comprar jantar.
Requisitar material.
Amanhã já é sexta. Está quase.
O eco nos meus ouvidos: “preciso de ajuda!”
Já não sei nada.
Sim, mãe, está tudo bem, só estou cansada.
Até logo.

Susana Soares
12.04.08