"Mulher sentada a um espelho", de Kirchner
Susana Soares
19.04.08
Falta menos de uma hora. Está quase.
Calma, Camila, calma!
Não te serve de nada entrar em pânico. Não te vais esquecer de nada. Lembra-te do que ele te disse. Respira fundo, conta até dez, conta até vinte, conta até te fartares de contar. Olha para o espelho e vamos, mão firme, não podes falhar o risco, não borres a pintura, não há tempo para recomeçar. Uma vez só. Mão segura, anda, aqui não há luxos, és tu que te maquilhas.
Estás velha, Camila, velha e gasta. E não saíste da cepa torta. Que miséria de vida! Saudade do cheiro da terra quente com chuva, de rebolar na relva, de enterrar os pés na areia. Saudades de sentir os olhos a seguir-te quando passavas. Saudades de te sentires bonita. Desejável. Desejada.
Então, Camila, segura as lágrimas, estás parva ou quê? Mão firme, Camila, pinta-te, vá, esquece isso, arruma as ideias, pousa-as em cima da mesa, pendura-as no cabide, guarda-as na gaveta, dobra-as ao pé da roupa e dos sapatos, faz o que quiseres mas livra-te de continuar a pensar nisso. As falas, Camila, não te esqueças das falas. E se te esqueceres não dês parte de fraca, Camila, respira fundo, mexe nos objectos de cena e retoma o discurso.
Credo, este vestido está cada vez mais coçado. Não sei se chega ao final da temporada. Tem de chegar, dê lá por onde der. Tem de chegar. Têm de chegar. O vestido e tu.
Anda, Camila, sai da frente do espelho, já chega! (Até nem ficou mal. Pelo menos, melhor que ontem. Já não é mau.) Costas direitas, Camila, vá. Está quase. Esquece tudo. Esquece a desilusão. Esquece o medo. Esquece a noite. Esquece as rugas. Esquece as mágoas. Esquece a solidão. Esquece que existes. Sobretudo isso. Esquece-te de ti.
E vai.
É agora. Não olhes para trás.
Merda.
Calma, Camila, calma!
Não te serve de nada entrar em pânico. Não te vais esquecer de nada. Lembra-te do que ele te disse. Respira fundo, conta até dez, conta até vinte, conta até te fartares de contar. Olha para o espelho e vamos, mão firme, não podes falhar o risco, não borres a pintura, não há tempo para recomeçar. Uma vez só. Mão segura, anda, aqui não há luxos, és tu que te maquilhas.
Estás velha, Camila, velha e gasta. E não saíste da cepa torta. Que miséria de vida! Saudade do cheiro da terra quente com chuva, de rebolar na relva, de enterrar os pés na areia. Saudades de sentir os olhos a seguir-te quando passavas. Saudades de te sentires bonita. Desejável. Desejada.
Então, Camila, segura as lágrimas, estás parva ou quê? Mão firme, Camila, pinta-te, vá, esquece isso, arruma as ideias, pousa-as em cima da mesa, pendura-as no cabide, guarda-as na gaveta, dobra-as ao pé da roupa e dos sapatos, faz o que quiseres mas livra-te de continuar a pensar nisso. As falas, Camila, não te esqueças das falas. E se te esqueceres não dês parte de fraca, Camila, respira fundo, mexe nos objectos de cena e retoma o discurso.
Credo, este vestido está cada vez mais coçado. Não sei se chega ao final da temporada. Tem de chegar, dê lá por onde der. Tem de chegar. Têm de chegar. O vestido e tu.
Anda, Camila, sai da frente do espelho, já chega! (Até nem ficou mal. Pelo menos, melhor que ontem. Já não é mau.) Costas direitas, Camila, vá. Está quase. Esquece tudo. Esquece a desilusão. Esquece o medo. Esquece a noite. Esquece as rugas. Esquece as mágoas. Esquece a solidão. Esquece que existes. Sobretudo isso. Esquece-te de ti.
E vai.
É agora. Não olhes para trás.
Merda.
Susana Soares
19.04.08