terça-feira, 18 de março de 2008

Fados


Margarida era uma fatalidade.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.

Sempre assim fora. Mesmo antes de nascer.
A mãe de Margarida, Rosa de nome, não tinha grande jeito para a maternidade, e quando soube que estava grávida chorou convulsivamente durante sete dias. Depois fartou-se de chorar e jurou que nunca mais verteria uma lágrima por causa daquela criatura que lhe tinha vindo estragar a vida. Aliás, Rosa decidiu nesse dia que nunca iria ser mãe. Assim, durante os penosos seis meses que se seguiram, nunca mais Rosa se preocupou com aquele ser cada vez menos minúsculo que a ia tentando dominar, ocupando-lhe as entranhas, e despertando sentimentos piegas a quem a rodeava.
Até ao dia em que acordou encharcada entre as pernas e percebeu que a criança ia nascer.
De cócoras ao pé da cama, sem um grito, mordeu as almofadas e fez força até aquela criatura sair.
Era Margarida que resolvera ser gente.
E Rosa, extenuada pelo esforço e pelo desgosto de não poder continuar a ignorar que tinha uma filha, num momento de fraqueza decidiu que a menina que ali estava se chamaria Margarida, como a bisavó. Talvez isso a protegesse dos males do mundo.
Depois recobrou forças, vestiu-se e, enrolando Margarida num lençol, levou-a à mãe e disse-lhe: “Tens aqui a tua neta. Chama-se Margarida, como a tua avó. Pode ser que assim gostes dela o que não gostaste de mim”. Virou costas e saiu.
De casa.
Da frente da mãe, ainda boquiaberta.
Da vida de Margarida.
Não voltou a aparecer.
Ainda escreveu algumas cartas. Sete, ao todo. Em todas dizia que estava bem e que não se preocupassem com ela. Em todas esperava que estivesse tudo bem lá por casa. Em nenhuma falou de Margarida.
Enfim, diriam os que a conheceram que Rosa nunca fora flor que se cheirasse.
Mas deixemos Rosa com os seus espinhos e voltemos a Margarida.
Criança pouco expansiva, desde cedo se revelara uma preocupação para a avó, que, dividida entre um amor genuíno à neta e um sentimento de culpa por uma culpa que não era dela mas que nem por isso a deixava dormir, tentava ser para a neta o que, pelos vistos, não fora para a filha. E tinham desenvolvido, entre elas, uma cumplicidade muda que lhes ia preenchendo os vazios no coração com bocadinhos de bem-querer.
Era frequente ver as duas, em dias de chuva, sentadas em silêncio lado a lado enquanto seguiam com os olhos as gotas grossas que iam escorrendo pelas vidraças da janela, cada uma com as suas gotas, dentro e fora dos olhos, umas e outras convergindo para pequeninos rios até que estes se juntavam num riozinho maior, com força suficiente para não deixar isoladas gotas perdidas, lavando um pouco à sua passagem. Dentro e fora dos olhos. De avó e neta. E depois levantavam-se, mesmo sem se olharem, e iam tratar das suas coisas. Sem uma palavra. Apenas um pouco mais reconfortadas.
Fatalmente, chegou o dia em que Margarida perguntou à avó pela mãe.
Fatalmente, chegou o dia em que a avó de Margarida teve que dizer à neta que não sabia da filha e que isso lhe doía mais do que a morte.
Fatalmente, chegou o dia em que Margarida e a avó choraram agarradas uma à outra, já sem procurar refúgio nas gotas grossas de chuva que iam escorrendo pelas vidraças da janela.
E finalmente chegou a noite em que a avó de Margarida percebeu que a culpa não era dela e adormeceu em paz.
Percebera, finalmente, que tudo fora apenas uma fatalidade.
Como a chuva numa nuvem demasiado pesada.
Como o arrepio numa pele tocada ao de leve.
Como a curiosidade num gato.
Como Margarida.

Susana Soares
18 de Março de 2008